- CAMÕES é «a aleluia da língua portuguesa» (Carlos de Oliveira)
Amor é fogo que arde sem se ver;
é ferida que dói e não se sente;
é um contentamento descontente;
é dor que desatina sem doer;
É um não querer mais que bem querer;
é solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
é cuidar que se ganha em se perder;
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
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0 Amor é, de facto, o principal tema de toda a lírica camoniana – como é n'Os Lusíadas, uma das grandes linhas que movem, organizam e dão sentido ao universo, elevando os heróis à suprema dignidade de, através dele, atingirem a divinização.
Na Lírica de Camões, o amor é, contudo, fonte de contradições vivamente sentidas: ele é sucessivamente “fogo que arde sem se ver”; “ferida que dói e não se sente”, “contentamento descontente” – daí que dificilmente ele possa trazer consigo a alegria e a paz. É algo de indefinível ou, nas próprias palavras do Poeta, “um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como e dói não sei porquê.”
O amor aparece nestes poemas sob uma dupla abordagem. Uma é a sua abordagem à maneira petrarquista, de raiz provençal e neoplatónica. Trata-se de um amor espiritualizado, em que não se vislumbra o corpo dos amantes, que se compraz na adoração e contemplação do ser amado e que leva a que o amador se “transforme” na “cousa amada”. Num amor assim vivido, a ausência da amada não só não é sentida com dor, mas é encarada como ocasião de purificação do sentimento amoroso. A mulher amada, encarada como reflexo da beleza divina, é a ponte para a perfeição do “amador”. Assim, ela não é retratada com traços fisionómicos precisos – a sua beleza, que é grande, reside sobretudo no olhar, “brando e piedoso”, na postura “humilde”, na bondade; o seu retrato é um retrato psicológico da perfeição e pureza que dela emanam. Regista-se a impressão que a sua beleza causa, e não os traços de que essa beleza é feita. Trata-se de um ser sublime, divinizado, que se movimenta numa natureza alegre, colorida, paradisíaca. (...)
Mas o amor aparece também visto sob outro aspecto, numa outra abordagem. Camões, senhor de uma “longa experiência” de vida, apercebe-se da enorme distância que vai do pensamento à realidade vivida – e sente, mais violentamente que Petrarca, que a vivência quotidiana do amor, longe de trazer tranquilidade e paz, se for dela excluído o factor erótico, traz inquietação e perturbação. (...)
Da tensão (...) entre o amor espiritual e o amor sensual, resultam, para quem ama, conflitos interiores, perplexidade, contradições, angústia. O sentimento amoroso torna-se motivo de perturbação; a mulher amada transforma-se em “fera”, em “Circe”, que enfeitiça, destilando no amador o "mágico veneno" e transformando-lhe o pensamento – a ausência e a morte da amada passam a constituir ocasião de dúvida, ciúme, angústia, “mágoa sem remédio”.
Amélia Pinto Pais, Eu cantarei de amor - Lírica de Luís de Camões, Areal Editores
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Erros meus, má fortuna, amor ardente
em minha perdição se conjuraram;
os erros e a fortuna sobejaram,
que pera mim bastava amor somente.
Tudo passei; mas tenho tão presente
a grande dor das cousas que passaram,
que as magoadas iras me ensinaram
a não querer já nunca ser contente.
Errei todo o discurso de meus anos;
dei causa [a] que a Fortuna castigasse
as minhas mal fundadas esperanças.
De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
este meu duro Génio de vinganças!
*** Amália canta "Erros meus"
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- http://www.youtube.com/watch?v=iEhpsVxnyK0&feature=related
- http://www.youtube.com/watch?v=aTUpzFlV15E&feature=watch_response
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De camões, em pura verdade, muito pouco sabemos
De
Camões, em pura verdade, muito pouco sabemos. Nasceu pobre, viveu pobre, morreu
mais pobre ainda (se não miseravelmente), ele, que acumulou bens que milhares e
milhares de homens não têm chegado para delapidar. E será difícil exaurir tão
fabulosa fortuna. Porque – quem o duvida? – foi Camões que deu à nossa língua
este aprumo de vime branco, este juvenil ressoar de abelhas, esta graça súbita
e felina, esta modulação de vagas sucessivas e altas, este mel corrosivo
da melancolia. Daí ser raro o verso português digno de tal nome que as águas
camonianas não tenham molhado de luz, desde as mais ásperas das suas consoantes
às suas vogais mais brandas.
Fora do nosso
coração, não sabemos onde Camões nasceu; nem o ano ou o dia em que saiu da
"materna sepultura" para o primeiro amanhecer. Como não sabemos onde
estudou ou quem lhe ensinou o muito que sabia. Nem isso importa. Nalgumas
linhas da sua poesia, e sobretudo nas poucas cartas que indubitavelmente são dele,
pode ler-se que, como português, encarnou até à medula toda a nossa condição:
pobreza, vagabundagem, cadeia, desterro.
"Erros", "má fortuna" e "amor ardente" se
conjuraram para fazer daquele alto espírito do maneirismo europeu uma das
figuras mais desgraçadas da via sacra nacional. Por "erros",
talvez se possa entender um cristianíssimo arrependimento daquele marialvismo
da sua juventude; a "má fortuna" não pode ter sido senão a de ter
vivido num tempo em que Portugal, além de ser "uma casa sem luz em
matéria de ilustração", se preparava fatidicamente para abandonar
todas as suas guitarras nos campos de Alcácer Quibir; quanto ao "amor
ardente" – não foi o próprio Camões que se mostrou dividido entre
o límpido apelo dos sentidos e toda uma platonizante
teoria de amor bebida em Petrarca e Santo Agostinho?
Não sabemos também
quem o poeta tenha amado, para lá das anónimas "ninfas de água doce" do Mal Cozinhado e outros bordéis
de Lisboa. Mas que tais "ninfas" tiveram na sua vida importância, ninguém pode duvidar. As
cartas de Camões, e como fonte da sua vida privada nada temos mais seguro, além
de nos darem notícia do seu espírito arruaceiro, quase não falam noutra coisa.
Que a sua poesia só muito raramente tem a ver com os "pagodes" de
Alfama é óbvio, mas dali deve ter partido algumas vezes para, depois de
metamorfoses várias, voar muito alto, como sempre aconteceu, particularmente em
herdeiros da cortesia e do "dolce
still nuovo". Porque a verdade é que nenhuma poesia portuguesa
partiu tanto dos sentidos, para tanto se desprender deles, como a de Camões.
Eugénio de Andrade
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como a pintura é a poesia; coisas há que de perto
mais te agradam e outras, se à distância estiveres
Horácio, Arte Poética
- ANAMORFOSE:
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